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O Humanismo Franciscano

Humanismo Franciscano e Ecologia

 

 

Frei Miguel de Negreiros OFMCap

 

É evidente que não vou tratar aqui do HUMANISMO como doutrina dos humanistas do Renascimento, nem vou tratar da Ecologia como tratado do meio ambiente.

Aqui entende-se por Humanismo Franciscano a visão do homem e da mulher inspirados em S. Francisco e em Sta. Clara. Entende-se por Ecologia a visão e as atitudes dos franciscanos no relacionamento com a Irmã Mãe Natureza.

Segundo José António Merino (José António Merino, Vision Franciscana de la Vida Quotidiana, Ediciones Paulinas, Madrid - 1986), em quem me inspirei para preparar esta conferência, poderemos sintetizar em 7 pontos a maneira como o homem, ao longo da história, se relaciona com o mundo: PÂNICO. ASSOMBRO. RESPEITO. RACIONALIZAÇÃO. DESENCANTO. EXPLORAÇÃO e finalmente REDESCOBERTA de que o mundo é a nossa CASA.

Neste trabalho tratarei de ver como deve ser o nosso relacionamento e comportamento com a Irmã Mãe Natureza, tendo em conta a nossa visão e a nossa experiência franciscana do que é ser homem.

Como nos foi sugerido dividirei em três pontos a nossa reflexão:

- O homem como relação.

- O homem e o seu corpo.

- O homem e a natureza.

 

 

1. O homem como relação

 

A visão franciscana do homem é certamente original, comparada com as diversas interpretações humanistas ao longo da história.

Francisco foi e propôs um novo tipo de homem a partir da sua original experiência de Deus e do modo original de tratar com todos os seres.

Francisco foi um homem estruturalmente “simpático” a Deus, a todos os outros homens e a todas as criaturas.

Podemos dizer que a “simpatia” por tudo é a primeira nota constitutiva do homem Francisco, de espírito aberto e fraterno, que vive convive com tudo e com todos.

Francisco é um especialista da arte de viver, pois consegue fazer a experiência de todas as formas de vida desde o nascimento até a morte. Ele nasce, sente, vive, ama, trabalha e morre em comunhão com Deus, com os homens e com o universo.

Ele não fica a ver a procissão dos seres a passar, mas vemo-lo totalmente imerso no mais íntimo da vida de toda a criação, em marcha. Ele sintoniza, ele está em simpatia com todas as expressões ou formas de ser, pensar e de viver.

A sua experiência de humanista está profundamente marcada pela PRESENÇA DE DEUS, que ele vê em tudo e em todos. Estremece de ternura, de admiração e de espanto ao surpreender em si e nos acontecimentos, na história, nos homens e em todas as coisas animadas ou inanimadas, sensíveis ou insensíveis, a PRESENÇA encantadora do maravilhoso Criador.

O homem não é rival dos homens nem dos seres da criação. É um irmão universal. Devido à sua estrutura ontológica e psicológica de simpatia por tudo e todos, e à sua abertura à PRESENÇA TOTAL, Francisco é e propõe um projecto de homem como um SER EM RELAÇÃO: em relação dinâmica com Deus, com os irmãos, com os demais homens, com os seres irracionais e a própria vida.

Para S. Boaventura e Duns Escoto, os teólogos franciscanos que melhor souberam traduzir, em pensamento, a forma de ser de Francisco, a relação é um constitutivo essencial da pessoa.

No Humanismo Franciscano, a pessoa humana é um ser para outrem. É como um som que soa e ressoa em reciprocidade com todos os outros sons.

Nesta relação vital, em que entram todas as vivências do espírito e do corpo, vencem­se todos os egoísmos e distanciamentos.

Sendo assim estruturalmente relacionado, o homem franciscano, a exemplo de S. Francisco, é um HOMEM CONFIANTE. Nunca pode desconfiar de ninguém e de nada. Se tudo quanto é mundano, humano e divino está em consonância com o homem, este não pode suspeitar mal de ninguém, nem fugir seja de quem for ou do que for.

E como a confiança é sempre recíproca, há, entre o homem e a mulher franciscanos e os demais seres, uma verdadeira partilha de confiança.

A confiança profunda e sem reticências traz consigo uma necessidade e um desejo de ENCONTRO.

Tudo e todos se encontram em S. Francisco: Deus e toda a criação (homens e mulheres e habitantes do céu, da terra e do mar).

E para que este encontro seja sempre renovado, Francisco lança-se numa busca constante de novos horizontes cósmicos, humanos e divinos. Francisco avança de surpresa em surpresa, até à Beleza Infinita.

Nada é estranho ao Humanismo Franciscano. Tudo lhe fala de afecto e de amizade.

Por isso no Humanismo Franciscano não pode faltar a gratidão por tantos e tantos dons.

Desde o encontro consigo mesmo até ao encontro com o Altíssimo, Omnipotente, Bom Senhor, Francisco vai experimentando todos os outros encontros desde os mais insignificantes, como o das pedras do caminho, até aos mais extasiantes, na estigmatização do Alverne.

No seu Itinerário para Deus, o Humanismo Franciscano celebra com alegria a festa de todos os encontros com todas as criaturas, que são outros tantos degraus para subir à montanha do Senhor.

E dado que estes encontros do Humanismo Franciscano são radicalmente sinceros e plenos de verdade, têm forçosamente de desabrochar em ACOLHIMENTO.

Por isso Francisco acolhe, com júbilo e gratidão, a revelação do amor de Deus e da amizade das criaturas. «Acolhe os socialmente enfermos, os ladrões, os salteadores, os leprosos, os pobres, os poderosos, os irrelevantes. Acolhe a criação inteira, não apenas com sentimentos de poeta, mas com entranhada amizade fraterna».

Acolhe tudo e todos, mas acolhe sobretudo os que não são acolhidos, assume as misérias humanas para as transformar.

A sensibilidade e o acolhimento franciscanos, podem transformar, como diz António Merino “o universo do temor num universo de aproximação exultante”.

A consequência de todo este Humanismo Franciscano, no que se refere à Ecologia, é evidente: uma “irmanação universal”.

O Humanismo Franciscano torna-se fraternidade cósmica e universal. A cortesia do Humanismo Franciscano, tão proverbial entre os homens, transforma-se também ela em cortesia cósmica e em afabilidade para com todas as coisas. Para o Humanismo Franciscano todos os outros seres se revestem, de algum modo, da dignidade de pessoas. Não se pode estragar, ferir, ofender, conspurcar ou esbanjar nada, porque tudo faz parte do nosso ser humano.

O ser humano, homem e mulher, tem de encontrar uma nova forma de existir e de habitar num mundo mais humanizado e familiar.

É urgente que nos revistamos de grande respeito e de extasiante admiração por todos os seres nossos irmãos. Antes de os conhecermos já os amámos, porque são parte integrante da nossa vida e componente necessária do nosso projecto de felicidade.

 

2. O Homem e o seu Corpo

 

O tema do corpo continua ainda hoje a ser um enigma incompreensível para o homem.

Há quem o deprima e rebaixe à condição de “pesada mochila” que a alma tem de suportar, e quem o exalte a ponto de o identificar com o “eu” humano, onde não há lugar para o espírito.

Na história do pensamento sempre assistimos ao DUALISMO irredutível entre o espírito e a matéria. O corpo é matéria e a alma é espírito, de modo que o corpo e a alma estiveram sempre em conflito.

No franciscanismo, o tema do corpo também não está definitivamente elaborado. Quando os escritores não franciscanos aludem ao tema do corpo em S. Francisco, não vão muito mais além do que uma simples referência genérica ao «irmão corpo» e ao “irmão asno”.

No entanto, entrando em cheio nos Escritos de S. Francisco, a visão do corpo aparece-nos revestida de certa novidade e surpresa.

É verdade que S. Francisco não disse muito acerca do corpo e o que disse tem de ser enquadrado na visão optimista de toda a criação.

No Capítulo 23 da I Regra, S. Francisco alude à criação do homem como imagem e semelhança de Deus, segundo a Visão Bíblica do Génesis.

Mas é na Exortação V, onde aparece a visão mais bela e positiva do corpo. Diz S. Francisco: «ó homem, considera a quanta grandeza o Senhor te levantou, pois te criou dando-te um corpo à Imagem do Seu Filho Dilecto, e dando-te um espírito à sua própria Semelhança. (Gén. 1,26)

Se o homem é Semelhança de Deus, deve-o ao espírito, e se é Imagem de Deus, deve-o ao corpo. Mas o corpo deve a sua dignidade de imagem de Deus por ser Imagem do Corpo de Cristo. Cristo é que é o modelo e a referência do homem, também no tocante ao corpo.

A dignidade do corpo humano, para S. Francisco, não se reduz a um conteúdo físico­biológico. Mais: o corpo humano, criado à imagem do Filho, é para S. Francisco a memória e a recordação do corpo que a Palavra do Pai assumiu na Encarnação. A verdade humana do corpo assenta na verdade teológica do Corpo de Cristo.

A grandeza do homem também se encontra no seu Corpo. A humanidade de Cristo revela a humanidade do homem. Como a Paixão de Cristo foi o modelo da paixão e das chagas do serafim do Alverne. S. Francisco não só se distancia dos hereges Cátaros, mas até de alguns grandes teólogos, como Santo Agostinho, uns e outros negativos e pessimistas em relação ao corpo.

Os textos dos Escritos de S. Francisco que denotam um sentido negativo acerca do corpo, é preciso entendê-los tendo em conta que o corpo é assumido como inimigo da alma: “a carne”, segundo a expressão de S. Paulo.

É a esta luz que devemos interpretar algumas expressões, como esta: “odiemos o nosso corpo com os seus vícios e pecados, porque vivendo nós segundo a carne, quer o diabo roubar-nos o amor de Nosso Senhor Jesus Cristo e a vida eterna” (I Reg. 22,5). Ou então as mesmas expressões das Exortações: “devemos aborrecer os nossos corpos com seus vícios e pecados” (Ex.I,6;10,2;12,2.)

Aqui não se trata do corpo enquanto tal, mas do corpo com seus vícios e pecados. O crente Francisco não pode deixar de ver o corpo no horizonte da Criação, da Redenção e Ressurreição.

O corpo, além disso, tem um valor cosmológico, ou seja, um valor de relação com o mundo, já que é através dele que o homem comunica com a criação.

O homem do cântico das Criaturas tem uma perfeita consciência da sua corporeidade, pela qual confraterniza com todas as criaturas.

A solidariedade cósmica só é possível através do Corpo.

Para S. Boaventura, alma e corpo não são duas realidades separadas mas complementares na unidade do ser humano. O corpo é a única possibilidade de a alma ter uma existência concreta e temporal. Ou seja: o corpo corresponde à vocação do homem à comunhão com todos os seres criados que existem no mundo. A própria existência do corpo, também ele micro-cosmos, é a afirmação da solidariedade e da fraternidade do homem com as outras criaturas.

Para Duns Escoto o corpo está em relação com a alma como a matéria está em relação com a forma e neste ponto é igual a S. Tomás e a toda a Escolástica. Mas vai mais longe e dá ao corpo uma perfeição chamada forma de corporeidade, pela qual mesmo sem a alma o corpo tem uma dignidade que não se pode reduzir a uma inter-acção físico-química. Isto é, o corpo mesmo sem alma é superior aos elementos físico-químicos de que é composto, e participa da dignidade do «eu».

Dessa dignidade do Corpo participam também todos os outros seres vivos e, por simpatia ontológica, todos os outros seres, mesmo inanimados.

Esta visão global de Escoto dá a todas as criaturas uma dignidade que as faz participantes da própria dignidade do homem.

Assim, através do corpo, a alma entra em comunhão com as coisas da natureza, e todos os seres da natureza entram em comunhão com o homem participando do seu valor espiritual.

Daí que o relacionamento com o universo criado deve ser tão respeitoso como o relacionamento da alma com o Corpo. Assim como a alma precisa do corpo para conhecer e amar neste mundo, assim o corpo precisa das outras criaturas para ser instrumento e complemento da alma.

O corpo humano, funcionando como condição da possibilidade de o homem ser homem no mundo da natureza, faz com que todos os seres da natureza participem da dignidade do homem, através do corpo.

O corpo, através dos seus sentidos, tem uma relação estruturalmente relacional, não só com as pessoas mas também com todo o universo.

Graças à vista, ao ouvido, ao olfacto, ao gosto e ao tacto o homem entra em contacto com todo um universo de experiências, de vivências e de comunicação.

Segundo S. Boaventura o homem, que é considerado micro-cosmos, tem cinco sentidos que são como cinco portas pelas quais entra na nossa alma o conhecimento de todas as coisas que existem no mundo sensível (Itin. C. 2, N. 3).

A visão humanista do corpo da Escola Franciscana apela a que restituamos ao corpo a sua dignidade verdadeiramente humana e faz com que prestemos a todas as criaturas que com ele convivem o obséquio de um diálogo fraterno e amigo, que exclui toda a tentação de exploração e as promove à dignidade de fraternidade universal.

 

3. O Homem e a Natureza

 

Pelo seu corpo o homem está radicalmente em comunhão com a natureza. O homem não pode não estar em relação com os seres que o envolvem.

A natureza ou o mundo fazem parte do nosso ser humano e do nosso projecto de vida.

Nós somos um ser no mundo.

O ser humano e o mundo-natureza forçosamente estão em comunicação recíproca. A natureza constitui aquelas circunstâncias que integram o meu “eu” na expressão feliz de Ortega Y Gasset: “eu sou eu e as minhas circunstâncias”.

Podemos dizer que a vocação do ser humano é humanizar a natureza e deixar-se «mundanizar» ou “naturalizar” pela natureza, não no sentido moral vulgar mas no sentido cosmológico e psicológico.

Temos de tomar consciência do nosso diálogo “eu-mundo” não só na dimensão exterior e objectiva, de duas realidades que estão frente a frente em reciprocidade existencial, mas também na dimensão interior e subjectiva, dando-nos conta que é todo o nosso ser – corpo e alma – que entra em comunhão com a natureza, para dar e receber.

Entre o homem e a natureza pode e deve haver uma verdadeira harmonia de existência de vida. Para isso o homem não pode considerar a natureza só como um objecto, mais ou menos útil, mais ou menos necessário, mas tem de a aceitar como parte integrante do seu ser.

A natureza não está à frente de nós: vive connosco! Não é um instrumento ou objecto manejável, segundo o nosso capricho, mas uma dimensão essencial do nosso espaço vital.

O homem torna-se vil e grosseiro e perde a sua nobreza de homem quando usa e abusa dos seres da natureza. Parafraseando S. Paulo, que afirmava que o marido que não ama a sua esposa peca contra o seu próprio corpo, podemos dizer: o homem que não ama mas ofende a natureza peca contra o seu próprio corpo. E porque o corpo está indissoluvelmente unido à alma, peca também contra a própria alma. Ou seja: ofender a natureza – poluindo-a, esbanjando-a, destruindo-a, – é um pecado em sentido ético e teológico.

O homem não pode ser o rei despótico da criação mas o irmão universal, o grande irmão, o irmão mais velho de todos os homens, animais, plantas e coisas.

A vida do homem sobre a terra tem sido difícil, ao longo da história e tem exigido muita luta para garantir a sobrevivência e o progresso da humanidade.

Esta luta é legítima e podemos e devemos socorrer-nos da técnica para vencer os obstáculos que a própria natureza nos oferece.

O mal está no exagero da ambição e da cobiça que levam os homens a criar, através da técnica, um mundo artificial, com grave prejuízo do mundo natural.

A técnica veio a criar uma outra natureza que embora materialmente ajude o homem no seu bem-estar, veio também separá-lo e desgarrá-lo da Irmã Mãe Natureza.

No seu afã insaciável de domínio e de gozo, o homem deixou de contemplar o mundo da natureza para se entregar quase só à tarefa materialista e desumana da fabricação e da produção consumista.

Com estes exageros da exploração desregrada da natureza, o homem quebrou a relação vital com a natureza e criou um desequilíbrio que lhe pode ser fatal.

A natureza, porque é o prolongamento do próprio homem não pode ser só campo de ocupação mas também a CASA DE HABITAÇÃO.

Hoje assiste-se, em muitos lugares, ao assassínio da terra, ao que já se chama “terricídio”. Quantos rios, mares, fontes, florestas, campos, cidades, alimentos e o próprio ar que respiramos estão a ser vítimas da sôfrega ambição do homem.

O Humanismo Franciscano deve voltar-se para a Ecologia, e em nome do próprio homem, ou seja, da dignidade da pessoa humana, deve defender e promover a integridade, a beleza e o encanto da nossa casa comum que é o mundo, onde todos queremos habitar em paz, alimentar-nos racionalmente e vestir com a elegância das linhas e das cores da Irmã Mãe Natureza.

Ao menos como os lírios do campo e as aves do céu!

Em síntese: o nosso relacionamento com a Natureza tem como princípio inspirador a fé num único Deus, que é a fonte de toda a criação e de toda a vida, donde procede o homem e a natureza. Não aceitamos o Dualismo do espírito e da matéria.

O nosso relacionamento com a Natureza inspira-se também na relação do Espírito de Deus que se manifesta na Criação e nos faz respeitar valores superiores aos que o Positivismo descobre, na sua investigação puramente experimental.

O nosso relacionamento com a Natureza, finalmente, inspira-se na Sabedoria Eterna do Divino Artista, donde procede toda a verdade, bondade e beleza das criaturas. Superamos todo o utilitarismo, pobre e redutor, da arvorada TECNOLOGIA em deusa do progresso e da felicidade humana.

O nosso relacionamento com a Natureza é de simpatia, de admiração, de comunhão celebrativa, de gratidão, sem domínio nem possessão, vendo, como num espelho, nos outros seres criados, mesmo irracionais, inanimados e insensíveis, o reflexo da sublime dignidade humana e da infinita Beleza de Deus.

 

Fonte: Frei Miguel de Negreiros OFMCap

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